Pesquisadores
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) estão
realizando, por meio de procedimentos minimamente invasivos, a autópsia de
corpos de pacientes diagnosticados com covid-19 que faleceram no Hospital das
Clínicas da instituição.
Um dos
objetivos do trabalho é coletar e avaliar rapidamente amostras de tecidos
pulmonares e de outros órgãos com o intuito de disponibilizar informações que
possam ser úteis à comunidade médica do país para tratar os casos graves da
doença.
“Estamos
compartilhando os resultados preliminares das análises com a equipe médica do
Hospital das Clínicas e de outras instituições antes mesmo de publicarmos em
revistas científicas, com o objetivo de que os dados possam ajudar no
tratamento dos pacientes atualmente internados”, diz à Agência FAPESP Marisa
Dolhnikoff, professora da FM-USP e coordenadora do estudo que faz parte de um
projeto apoiado pela FAPESP.
A ideia dos
pesquisadores é correlacionar as constatações que estão obtendo com exames de
imagem (tomografias) e com as observações feitas por médicos clínicos ao tratar
os pacientes em estado grave.
Dessa forma
será possível avaliar se um paciente que ficou mais tempo internado apresenta
outras alterações no pulmão ou se as diferentes formas de ventilação mecânica
às quais são submetidos em unidades de terapia intensiva (UTIs) causam
alterações diferentes no órgão.
“Essa
correlação representa um passo fundamental desse estudo porque podem existir
diferentes perfis tomográficos, patológicos e clínicos da covid-19”, pondera
Dolhnikoff.
“Quando
começamos a liberar os dados, fomos imediatamente contatados por clínicos
dizendo que as tomografias dos pacientes que estão analisando nos hospitais não
são todas iguais. Isso levantou a questão de que pode haver mais de um padrão
de comprometimento pulmonar pela doença, por exemplo”, aponta a pesquisadora.
Foram
feitas, até o dia 3 de abril, seis autópsias de pacientes que morreram por
covid-19, com o consentimento das famílias.
O plano é
realizar, no total, entre 20 e 30 procedimentos, que são guiados por um
aparelho de ultrassom portátil e utilizadas agulhas, como as usadas em biópsias
em pessoas vivas, para ter acesso aos órgãos internos e coletar amostras de
tecidos, sem a necessidade de abrir o corpo.
Os quatro
primeiros casos analisados foram de dois homens e uma mulher, com idade acima
de 60 anos e histórico de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, e de
outro paciente mais jovem, também com doenças preexistentes. Em comum, a
evolução da doença nos quatro casos foi muito rápida – entre quatro e 10 dias.
Os
resultados preliminares das análises indicaram alterações semelhantes às
descritas por grupos de pesquisadores da China em quatro artigos publicados nas
últimas semanas, em que relatam os resultados de séries de autópsias de entre
três e quatro pacientes diagnosticados com a doença.
“Há um
interesse grande da comunidade médica brasileira nos dados que estamos
produzindo porque podem dar respostas mais imediatas para perguntas como quais
os impactos causados pelo vírus no pulmão”, afirma.
Lesões
extensas e múltiplas
As análises
feitas pelos pesquisadores da FM-USP corroboram a constatação de que a morte
pela covid-19 é causada por insuficiência respiratória em função de lesões
extensas e severas causadas pelo novo coronavírus, o SARS-CoV-2, em múltiplas
áreas dos pulmões – a síndrome respiratória aguda grave ou síndrome do
desconforto respiratório agudo com lesão difusa do tecido pulmonar.
A ação do
vírus é predominantemente nas células epiteliais, que revestem os alvéolos
pulmonares, participam do processo de troca gasosa – de gás carbônico por
oxigênio – e são alteradas ao serem infectadas pelo vírus.
A perda
dessas células epiteliais causa uma extensa lesão nos alvéolos pulmonares
(bolsas microscópicas nas quais ocorrem as trocas gasosas), denominada dano
alveolar difuso. Esse dano compromete a troca gasosa em uma área muito
expressiva do pulmão, reduzindo a oxigenação dos tecidos e levando à
insuficiência respiratória.
“Observamos
que o vírus infecta todo o trato respiratório, mas causa maiores danos nos
alvéolos pulmonares”, aponta Dolhnikoff.
Nos
pacientes que desenvolvem a forma mais agressiva da doença, as lesões são muito
semelhantes às que ocorrem na síndrome respiratória aguda grave (SARS) e na
síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS), ambas causadas por outros tipos
de coronavírus, constataram os pesquisadores.
“Analisando
as tomografias percebemos que algumas regiões do pulmão são mais afetadas, como
as posteriores, e que a infecção compromete, pelo menos, metade do órgão”,
afirma.
Os
pesquisadores também observaram, em um dos casos, pequenos focos de hemorragia
na microcirculação pulmonar, associados com microtrombos.
“Esse
fenômeno certamente está associado a distúrbios de coagulação já descritos em
pacientes que morreram em decorrência da covid-19”, diz Dolhnikoff.
Pneumonia
bacteriana
Outra
pergunta que os pesquisadores querem tentar responder por meio da correlação das
análises dos tecidos com os dados clínicos e de tomografias é se as pneumonias
bacterianas secundárias que podem acometer os pacientes em estado grave e
complicar o quadro clínico têm relação com o tempo de ventilação a que foram
submetidos.
As análises
dos quatro primeiros casos mostraram que dois pacientes foram acometidos por
uma grave pneumonia bacteriana após a infecção viral. Essa informação foi
imediatamente comunicada às equipes médicas.
“É natural
que uma infecção viral desencadeie uma pneumonia bacteriana. Mas, no tratamento
desses casos graves, essas infecções bacterianas precisam ser rapidamente
identificadas e tratadas com antibióticos”, ressalta Dolhnikoff.
A ocorrência
de duas pneumonias juntas – a viral e a bacteriana – causa sérios danos tanto
locais, no pulmão, como sistêmicos, uma vez que começam a circular pelo corpo e
lesar outros órgãos.
“A infecção
bacteriana tem um impacto enorme na função pulmonar e repercute em outros
órgãos, resultando em quadro de sepse [falência múltipla de órgãos] que culmina
na morte do paciente”, explica Dolhnikoff.
Os
pesquisadores não observaram, até o momento, alterações agudas causadas pelo
vírus em outros órgãos. As alterações identificadas foram relacionadas à
própria sepse ou às doenças preexistentes dos pacientes, como alterações
crônicas renais e no coração, relacionadas a hipertensão e isquemia, e acúmulo
de gordura no fígado (esteatose hepática) associada a diabetes e obesidade.
Mas, uma vez
que dados da literatura médica sugerem que a infecção pelo novo coronavírus não
se restringe ao pulmão, com evidências de que é excretado pelas fezes e urina e
causa perda de olfato e do paladar, a ideia é analisar o efeito viral em outros
órgãos por meio de materiais coletados do coração, rins, fígado, baço, cérebro,
medula óssea, músculo esquelético, mucosa nasal e oral.
“A ideia é
criar também um biorrepositório de tecidos que possam ser estudados por meio de
técnicas avançadas de biologia molecular para identificar possíveis alvos
terapêuticos para combater a doença”, diz Paulo Saldiva, professor da FMUSP e
um dos pesquisadores participantes do projeto.
Fonte:
Estadão Conteúdo